Henry Kissinger (1923-2023)

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LINCOLN SECCO*

Kissinger foi um scholar, mas também um homem de Estado, propagandista do ideário conservador, um calculista e intrigante funcionário de Estado, um carreirista e, depois, conselheiro de vários presidentes

“Se existe um Deus, o Cardeal Richelieu terá muitas contas a prestar. Se não… bem, sua vida foi bem-sucedida”. (frase atribuída ao Papa Urbano VIII, quando da morte do Cardeal Richelieu).

“Da história europeia sabemos que toda vez que tratados que visam uma nova disposição de forças foram assinados, estes tratados foram chamados de tratados de paz… apesar de serem assinados com o propósito de retratar os novos elementos da guerra que se aproximava” (Henry Kissinger, Diplomacia, p. 393).

Henry Kissinger foi um scholar. Seu primeiro livro foi uma tese típica de um historiador acadêmico rigoroso e extensamente baseado em fontes primárias. Todavia, ele foi ainda um homem de Estado, propagandista do ideário conservador, um calculista e intrigante funcionário de Estado, um carreirista e, depois, conselheiro de vários presidentes e autor de livros de divulgação sobre a diplomacia.

Como compor essas dimensões num só indivíduo? Afinal, é impossível não ver nele também o Secretário de Estado de Richard Nixon responsável por guerras genocidas como a do Vietnã. Seria só um realista? Um êmulo de um Cardeal Richelieu?

Em sua formação acadêmica ele foi marcado pela ideia spengleriana da decadência do Ocidente, mas rejeitou o que nela havia de inevitável. Ainda assim, depois do fim da Guerra Fria perguntou-se, incerto e nas entrelinhas, se os Estados Unidos não teriam perdido a liderança dos valores mundiais e se não deveria redefinir seus interesses nacionais. Rejeitou ainda a teoria dos jogos, o positivismo reinante em sua época e a escolha racional que não leva em conta valores morais. Negou o princípio da causalidade na história, as leis objetivas e o determinismo de qualquer espécie.[i]

Todavia, ninguém se dispôs a travar mais guerras do que ele, arquitetar golpes de Estado ou invasões de outros países. Ele defendia a democracia ocidental apoiando ditadores, contando que todas essas contradições eram submetidas a uma lógica universal que se traduzia numa estratégia: defender-se da “ameaça do comunismo” que teria surgido em 1917 com a Revolução Russa.

A ambiguidade se desfaz quando, parafraseando Antonio Gramsci, percebemos que na sua política encontramos a sua “filosofia” dotada de pretensões universalistas: uma crença arraigada na superioridade da Europa e dos valores herdados dos pais fundadores dos Estados Unidos. Como Maquiavel, ele também está mergulhado nas lutas de seu tempo e não cria tratados políticos desinteressados. Claro que sua obra tem sentido diverso dos livros do secretário florentino, simplesmente porque visa antes conservar um quadro de relações de força internacional e não criar um novo arranjo internacional para viabilizar um Estado nacional. Henry Kissinger escreve como um profeta armado.

Na sua principal obra, O mundo restaurado (1957) é possível perceber que o seu maior problema jamais foi uma inocente investigação acadêmica sobre o mundo convulsionado pela Revolução Francesa ou a figura resignada de seu ídolo Metternich, o chanceler do império Austríaco. Todo o seu pensamento está voltado para a reconstrução histórica dos períodos de equilíbrio internacional a partir da conjuntura em que ele escreveu: a assim chamada Guerra Fria. Vemos em cada reflexão sobre a história uma projeção, mais ou menos explícita, de sua visão sobre a ordem mundial em que socialismo e capitalismo se confrontavam como modelos sociais existentes.

Ele inicia pelo mais clássico dos temas: a Europa. E por uma ideia inteiramente devida ao historiador francês François Guizot. O velho continente nunca teve um único governo ou uma identidade fixa e unitária. A China tinha unidade sob um imperador. O islã tinha um Califa e a Europa um Sacro Imperador Romano. Mas este não foi hereditário e era eleito por sete (depois nove) príncipes eleitores.

Carlos V, que esteve mais próximo de uma ideia de Monarquia Universal, na verdade se contentaria com uma Ordem em equilíbrio. Três eventos, para Metternich, impediram a unidade europeia: os “descobrimentos”, a imprensa e o cisma na Igreja. Mais tarde lembraremos a pólvora.

No primeiro caso, os europeus se envolveram numa empresa global. A imprensa compartilhou conhecimentos numa escala imprevista. A Reforma Protestante destruiu o conceito de uma Ordem Mundial sustentada pelo papado e o império.

As dificuldades de Henry Kissinger com o momento revolucionário da história lembram as críticas de Gramsci à História da Europa de Benedetto Croce: iniciada em 1815, com a Restauração dos Bourbon, ela evita o principal: a Revolução Francesa.

Henry Kissinger vê a Revolução como ameaça, desvio, destruição e, uma vez acontecida, com consequências que só podem ser controladas. Assim, ela aparece apenas como a interrupção de uma história forjada em equilíbrios. Entre o sistema da Paz de Westfália (1648) e o de Viena (1815) há uma Revolução, mas ela não inicia uma nova Era. Ao contrário, finaliza. É sempre um sistema de equilíbrio que sustenta anos de prosperidade e paz. Os períodos revolucionários são interregnos marcados pela “anormalidade” da guerra.

A Paz de Westfália foi resultado da Guerra dos Trinta Anos, iniciada com a defenestração de Praga em 1618 e terminada em 1648 com aquele tratado.

Henry Kissinger repetiu muitas vezes que “o homem é imortal, sua salvação é depois (hereafter). O Estado não, sua salvação é agora ou nunca”.[ii] A frase é do Cardeal Richelieu que no período westfaliano instituiu a ideia de Raison d’État, depois de 1848 substituída pela palavra alemã Realpolitik. Ele foi o “primeiro Ministro” da França entre 1624 e 1642. Longe de buscar alinhamentos em função da fé religiosa, ele avaliou friamente o balanço de poder europeu e calculou suas alianças a partir da manutenção do poder francês durante a Guerra dos Trinta Anos. Isso explica a dança das coalizões entre países em diferentes conflitos.

Espanha, Suécia e Império Otomano estavam decaindo a potências de segunda ordem. A Polônia se extinguindo. Rússia (ausente do Tratado de Westfália) e Prússia (que desempenhou papel insignificante, segundo Henry Kissinger) emergiram como potências militares.[iii]

A mudança de lado era conduzida por interesses circunstanciais e da “anarquia e pilhagem aparentes” surgiu o equilíbrio.

As guerras do século XVII eram menos devastadoras por duas razões: primeiro pela capacidade de mobilizar recursos sem a excitação de uma ideologia ou religião e sem “governos populares” capazes de provocar emoções coletivas; em segundo lugar, o orçamento era limitado pela impossibilidade aumentar muito os impostos. Poder-se-ia acrescentar o caráter rudimentar da tecnologia.

Em sua narrativa panorâmica daquele período Henry Kissinger projeta o papel que os Estados Unidos desempenhariam na segunda metade do século XX na Inglaterra do século XIX. Ela seria o fiel da balança de poder europeu porque sua política externa não exibia ambições continentais na Europa, devido à sua posição insular. Seu interesse restringia-se a limitar o poder de qualquer país continental que aspirasse à condição de única potência.

O interesse nacional inglês estava no equilíbrio e sua razão de Estado a conduzia a limitar os poderes continentais sem desejar qualquer conquista ou expansão territorial. Assim, ela colaborou para impedir a hegemonia de Luis XIV na Europa e, depois, a de Napoleão. A Inglaterra era um “poder moderador”.[iv]

Mais uma vez Henry Kissinger não é nada original. A comparação que liberais conservadores faziam entre a instabilidade política francesa e a estabilidade inglesa surgiu com a própria Revolução de 1789. Mais tarde Alexis de Tocqueville, por exemplo, descreveu como a nobreza inglesa soube misturar-se com seus inferiores e dissimular considerá-los como iguais; e soube mudar gradualmente pela prática o espírito de suas instituições, sem destruí-las.

Napoleão Bonaparte remodelou a Europa. Em 1806 acabou o Sacro Império e o seu último Imperador teve que elevar o arquiducado austríaco para a dignidade imperial a fim de governar os territórios restantes da Áustria com o mesmo título de Imperador.

O Mundo legado pela queda de Napoleão parecia uma volta ao passado. Na Conferência de Viena a Prússia exigia a anexação da Saxônia, o que repugnava à Inglaterra e à Áustria, de tal sorte que o diplomata da era napoleônica, Talleyrand, passou a ter voz influente no Congresso e a França foi readmitida no concerto das nações. Por outro lado, a Rússia exigia uma expansão que já tinha ido do Dnieper para além do Vistula e colocava não só a Polônia em risco, mas a própria Europa Ocidental.

Metternich conduziu uma política conservadora que visou garantir um acordo de potencias e retardar a decadência do império austríaco, ameaçado a leste pelos russos e na Europa central pela Prússia e pelos nacionalismos que emergiram depois das ocupações napoleônicas. A Prússia obteve parte da Saxônia, mas colocou em seu horizonte a unidade alemã que seria feita por ela bem mais tarde.

Metternich, segundo Henry Kissinger em O mundo restaurado, elaborou um pensamento racionalista tanto quanto os seus adversários revolucionários. Mas para ele um mundo em ordem e sem convulsões é que seria produto da razão e não os projetos utópicos de mudancismo social. Podemos encontrar ali a matriz do pensamento reacionário contemporâneo que conduz a duas linhagens: o liberalismo conservador do século XIX e a Revolução invertida ou de direita que De Maistre inaugurou.

Metternich sabia que as descobertas da Imprensa, da pólvora e da América mudaram o equilíbrio social. A primeira fez circularem as ideias; a segunda mudou a relação de forças entre a ofensiva e a defensiva; a terceira inundou a Europa de metais preciosos e criou novas fortunas. Poderíamos acrescentar a Revolução Industrial, posto que ela criou o antagonismo entre a classe média (Burguesia) e os proletários.

É no século XIX que passamos à consciência nacional. A Europa de 1815-1848 era um acordo de grandes potências sob o signo da Restauração: Inglaterra, França, Rússia, Prússia e Áustria. Balance of power.

O sistema de Metternich consistia em três elementos: equilíbrio de poder europeu, equilíbrio interno alemão entre Prússia e Áustria e um sistema de alianças baseado na unidade de valores conservadores.[v]

A questão sempre foi para Henry Kissinger a presença de um outro poder revolucionário no mundo: em sua época a União Soviética. Uma ordem mundial que não estivesse baseada em estruturas internas ideologicamente compatíveis não podia ser estável. A França era este poder na sua visão de historiador. Embora sua obra fosse perfeitamente fundamentada em documentos primários e muito bem escrita, o seu Napoleão Bonaparte estava sempre à sombra de Stalin ou de qualquer mandatário soviético.

Ora, por um momento esquecemos que Henry Kissinger observa o mundo a partir do interesse nacional de um poder que fora revolucionário. E aqui encontramos uma das falhas do seu pensamento liberal. Ele prega fins, mas não admite os meios.

Mais uma vez retomemos o exemplo de um pensador de maior envergadura: Alexis de Tocqueville. Para ele todas as revoluções civis e políticas tiveram uma pátria e a ela se limitaram. A Revolução Francesa não. Ela é única porque ela procedeu como se fosse religiosa, inspirou o proselitismo em outros países; considerou o cidadão de modo abstrato; quis substituir as regras tradicionais e os costumes por uma norma simples e geral baseada na razão e na lei natural. Ele arremata sua bela crítica dos desvios da Revolução com um ataque aos homens de letras (os intelectuais): desprovidos de uma prática administrativa elaboravam planos ideais de reorganização completa da sociedade. Nenhuma experiência temperava seus entusiasmos: “As paixões políticas foram, assim, disfarçadas em filosofia e a vida política foi violentamente confinada à literatura”.[vi]

Como Marx, Tocqueville foi marcado pela experiência democrática dos Estados Unidos durante a Jacksonian democracy.[vii] Mas enquanto ele observava o perigo da demagogia e da tirania das massas, Marx mostrava o quanto a forma pura da democracia, desprovida das limitações censitárias, ainda assim era um reino celestial burguês acima da desigualdade terrena e da luta de classes.

De toda maneira ali está contido o mantra de todo o conservador: a Revolução é um mal porque deseja reordenar radicalmente a sociedade, tendo por objetivo uma utopia universalista que só pode degenerar em tirania. Mas antes de 1789 os Estados Unidos já tinham feito a sua Revolução. É verdade que seu impacto no curto prazo jamais foi mundial como o da francesa. Mas a consolidação do país não o levou no século XX a impor os seus valores pela força em escala global?

Thomas Jefferson escreveu que as obrigações dos estadunidenses não se limitavam à sua própria sociedade: “We are acting for all mankind”.[viii] A doutrina Monroe, a anexação de grande parte do México, as agressões à América Latina e o apoio a golpes militares em todo o lugar não derivaram apenas da consideração do interesse nacional dos Estados Unidos.

Theodore Roosevelt revitalizou a Doutrina Monroe defendendo o exercício de um “poder de polícia mundial”, expressão que ele revisitou em alguns dos seus discursos. Não seria surpresa reencontrar na Doutrina Bush de Guerra Preventiva a mesma perspectiva aplicada ao Oriente Médio. O que importa é que se encontram nos Estados Unidos a mesma confiança de que seus valores políticos não são apenas superiores. Eles podem ser impostos aos demais países pela força, se necessário.

Bem, foi Robespierre quem disse que os povos não gostam de missionários armados. Esta lição Henry Kissinger jamais aprendeu.

O desafio soviético

A Revolução Russa representou um desafio semelhante à Francesa do século XVIII. Embora o novo governo soviético fizesse assinasse a Paz de Brest Litovsky com a Alemanha e contra as opiniões iniciais de Bukharin e Trotsky, Kissinger escreveu que a Rússia Soviética apenas combinava sua cruzada revolucionária com a Realpolitk, mantendo-se longe de apoiar a ordem existente. Curiosamente, ele considerava os EUA práticos e idealistas ao mesmo tempo e a liderança deste país como vital para que a nova ordem internacional da Guerra Fria se justificasse em termos morais e mesmo messiânicos. Os líderes estadunidenses teriam feito sacrifícios e esforços sem precedentes em nome de “valores fundamentais (…) no lugar de cálculos de segurança nacional” (p. 547). A instrumentalização das situações históricas para corroborar uma tese previamente estabelecida é evidente. Para ele o valor moral de qualquer ação estadunidense é um dado apriorístico inquestionável; por outro lado, qualquer prática revolucionária contra aquela opinião pré-estabelecida é de antemão moralmente condenável. Os “revolucionários” (no sentido negativo que ele atribui à palavra) são sempre os outros…

Isso não faz com que Kissinger deixe de reconhecer a racionalidade intrínseca ao adversário. Em sua obra Diplomacia, ele não repete o equívoco ideológico de igualar Hitler e Stalin, embora ambos fossem monstruosos para ele. As diferenças lhe permitem justificar a aliança antifascista dos anos da Segunda Guerra Mundial.

A União Soviética face a Segunda Guerra Mundial

A Polônia foi um Estado criado a partir de despojos dos antigos impérios derrotados: Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia. Depois da Revolução Russa, o Exército Vermelho tentou expandir a revolução até Varsóvia, sem sucesso. Assim, a Polônia caminhou cada vez mais para um governo com forte influência do Exército e aliado dos ocidentais. Certamente, não se podia esperar que uma Alemanha reconstruída no pós-Primeira Guerra aceitaria o corredor polonês entre ela e a Prússia Oriental.

A 1 de setembro de 1939 Hitler invadiu a Polônia e em outubro a anexou. Em 17 de setembro a União Soviética invadiu o leste polonês argumentando que o governo polaco não controlava o seu território e que não podia ficar sujeita a uma fronteira com a Alemanha. Nesta mesma lógica, enfrentou a Guerra de Inverno com a Finlândia, conquistando a Carélia finlandesa, e anexou em agosto de 1940 as repúblicas do Báltico (Lituânia, Letônia[ix] e Estônia). Tal política parecia mais pragmática do que ideológica para Henry Kissinger.

Stalin foi associado a Richelieu, quando este se aliou ao Sultão da Turquia três séculos antes. Afinal “se a ideologia determinasse, necessariamente, a política externa, Hitler e Stalin jamais teriam dado as mãos”[x]. Como explicar o pacto Ribbentrop – Molotov de 23 de agosto de 1939?

O pacto foi visto como resultado da sede stalinista por conquistas territoriais. Stalin teria partilhado a Polônia com Hitler, por exemplo. Quando se lê autores tão diferentes quanto Dahms ou Keegan, por exemplo, o líder soviético aparece da mesma forma. Não se explica o porquê do pacto e ele é apresentado como uma pessoa facilmente enganada por Hitler, o qual o teria traído em 1941. Contribuiu para este retrato de Stalin a autobiografia de Kruschev. Veremos que essa não é exatamente a leitura de Henry Kissinger.

Stalin teria dispersado o seu exército longe de suas fronteiras fortificadas. Bem, fronteiras fortificadas (como as linhas Maginot e Mannerheim mostraram) não seriam muito úteis naquela Guerra. O acordo e a ocupação de parte da Polônia geraram críticas internacionais à União Soviética. Em 14 de dezembro de 1939 ela havia sido expulsa da Liga das Nações por ter atacado a Finlândia.

Os soviéticos explicaram o pacto de outra forma. A ação de França e Inglaterra não era, naquele momento, consequentemente anti-germânica. A conferência de Munique foi avaliada pelo governo soviético como uma tentativa de aliança anti-soviética. A União Soviética pediu sanções contra a Alemanha em 1936 durante a militarização da Renânia e condenou o Anchluss e o desmembramento da Tchecoslováquia, enquanto a França e a Inglaterra aceitaram os fatos. Os governos ocidentais esperavam que a Alemanha, tendo ocupado a Ucrânia subcarpática, resolvesse invadir a Ucrânia soviética. Em seguida, o Japão poderia ocupar a Sibéria, obrigando a União Soviética a enfrentar uma guerra em duas frentes sozinha. Quando Hitler doou a Ucrânia subcarpática à Hungria, desapareceu o motivo para uma guerra e se viabilizou uma aproximação com os soviéticos.

Era possível e até provável que muitas lideranças ocidentais preferissem que a Alemanha fizesse uma guerra contra a União Soviética e que os dois exércitos se enfraquecessem. Uma derrota soviética significaria o fim da ameaça comunista interna em muitos países. Muitos historiadores ignoraram os interesses de classe envolvidos nas relações internacionais. A razão de estado é importante como instrumento da ideologia predominante no país. Estas questões e muitas outras permanecem objeto de controvérsia historiográfica.

Quando Itália, Alemanha e Japão assinaram um Pacto a 27 de setembro de 1940, Stalin foi colocado na difícil situação de aceitar uma aproximação com a Alemanha. Se o fizesse podia garantir a independência de seu país e participar como sócio menor dos despojos do Império Britânico após a destruição da Inglaterra. Se não o fizesse, podia ser atacado pela Alemanha depois daquela possível derrota.

As conversações entre Hitler e Molotov não progrediram e a Alemanha acabaria invadindo o território soviético em parte pela indecisão de Stalin em conceber que aquilo pudesse acontecer tão cedo. Kissinger atribui o equívoco de Stalin à irracionalidade do Führer. Seria lógico aguardar que a Alemanha fosse bem-sucedida no oeste para só depois atacar o leste. Kissinger viu uma coerência na política externa soviética que consistia em manejar alianças externas a fim de evitar ou adiar uma guerra e ao mesmo tempo colocar os países capitalistas uns contra os outros. Stalin foi visto pelo “estudo meticuloso das relações de poder”, como o “servo da verdade histórica”, “paciente, perspicaz, implacável”.[xi]

Isso explicaria uma série de tratados diplomáticos desde 1922 com a Alemanha (Rapallo) e tentativas de aproximação com Estados Unidos, a Itália fascista, França, Tchecoslováquia, Pacto Ribbentrop – Molotov, Iugoslávia (1941) e, mesmo em 13 de abril de 1941 com o Japão. Este acordo permitiu que seis meses depois Stalin deslocasse seu Exército do Orienta para resistir à ocupação alemã.[xii]

Ao mesmo tempo em que via em Stalin um realista, ele acreditou sempre na supremacia moral do Ocidente. Os comunistas seriam incapazes de compreender a importância que a legalidade e a moralidade tinham para os aliados. Os soviéticos não se importariam com o tipo de regime existente no Ocidente e esperavam que os Estados Unidos e Inglaterra fizessem o mesmo em relação ao leste Europeu.

O soviético Andrey Gromyko[xiii] não deixou de exaltar as qualidades de Henry Kissinger, mas disse que apesar de gostar de citar exemplos históricos os seus argumentos ofendiam a lógica e a História e eram puramente oportunistas; ele era dúbio e ignorava princípios.

A crise do pensamento contrarrevolucionário

No próprio momento em que Metternich refletia sobre o mundo convulsionado pela Revolução Francesa, o romance emergia como uma forma literária tão instável quanto aquele mundo. Sua leitura solitária em livros de pequeno formato, massificados por revoluções nas máquinas e nos materiais de impressão, fazia-se acompanhar por uma representação das personagens médias e de seu cotidiano.

Balzac e Stendhal apresentaram não mais heróis trágicos, como diria um leitor de Lukács. Embora as personagens pudessem ter um fim arrebatador, sua grandeza não era mais a de um grande herói da coletividade, mas a de pessoas isoladas num mundo em que ninguém mais podia se estabelecer permanentemente num emprego ou numa vocação. A nobreza restaurada depois de uma revolução que havia condenado um Rei era tão fake quanto aquela criada por Napoleão Bonaparte pois havia perdido sua função histórica.

Henry Kissinger apresenta uma reflexão tocante sobre aquela era das grandes tiragens impressas. Para ele “a aquisição de conhecimento pelos livros fornece uma experiência diferente da internet. A leitura é relativamente demorada; para facilitar o processo, o estilo é importante”. A leitura de livros recompensa o leitor com conceitos e a capacidade de reconhecer eventos comparáveis e projetar padrões para o futuro. O estilo leva o leitor a um relacionamento com o autor, ou com o assunto, fundindo substância e estética.[xiv]

O computador disponibiliza uma variedade muito maior de dados e o estilo não é mais necessário para torná-lo acessível, nem a memorização. Embora a crítica da perda da capacidade mnemônica seja tão antiga quanto a invenção da escrita, para ele há problemas novos que dizem respeito ao impacto da revolução informática na manutenção da ordem social.

Para o governante há o risco de “considerar momentos de decisão como uma série de eventos isolados e não como parte de um continuum histórico”. A conectividade de todos os aspectos da existência destrói a privacidade, inibe o desenvolvimento de personalidades com força para tomar decisões sozinho e muda a própria condição humana.[xv]

Num mundo em que o terreno social é movediço como estabilizar uma ordem conservadora? Os velhos padrões familiares, de hierarquia social nos ambientes públicos, nas corporações ou universidades foram minados pelas revoluções industriais. Sem tradições intelectuais, as ideias não têm foco ou direção.[xvi]

Há, porém, um tipo de revolução que ultrapassou o conservantismo que Henry Kissinger tanto admirou em Metternich. Ele não é a simples capacidade de operar uma “Revolução Passiva”, incorporando impulsos populares desprovidos de seu radicalismo inicial numa arquitetura conservadora, mas de empreender verdadeiras contrarreformas com uma forma revolucionária.

Suas origens estavam já em De Maistre e em seu questionamento da Revolução Francesa. O fascismo lhe deu corpo histórico. Norberto Bobbio em seu Destra e Sinistra argumentou estranhamente que comunismo e fascismo se aproximavam não segundo a díade “esquerda – direita”, mas “extremismo – moderação”. A ênfase passa da finalidade para os meios. Por isso encontramos autores como Niestzche ou Sorel simultaneamente invocados pela extrema esquerda e a extrema direita.

Socialistas moderados e liberais ou conservadores igualmente moderados podiam se associar em governos de coalizão ou pelo menos na aceitação de uma ordem democrática comum em que se daria a disputa eleitoral permanente entre eles.

No entanto, há uma diferença crucial entre os extremos. Ambos (nos anos entre as duas guerras mundiais) advogaram métodos violentos para destruir a ordem social e engendrar uma nova. Entretanto, comunistas jamais puderam se aliar permanentemente a fascistas. E jamais o fascismo pode se insinuar nos regimes do socialismo real. Ao contrário, a aliança entre comunistas, socialistas e conservadores não fascistas foi possível na II Guerra Mundial.

No entanto, os fascistas nem sempre chegaram ao poder propriamente por um golpe de Estado. A Marcha sobre Roma foi uma passeata que levou o rei a convidar Mussolini ao governo. Sua “revolução” foi desde então feita pelo alto. Tanto na Alemanha quanto na Itália muitas instituições conservadoras foram mantidas, ainda que submetidas à autoridade e à ideologia do líder. Mas elas não foram modificadas internamente. O Exército, a Igreja e a Monarquia (no caso italiano) continuaram colaborando passiva ou ativamente com os fascistas.

Sendo assim, a revolução da extrema direita não é uma excrescência na história do liberalismo, mas um dos resultados possíveis da ordem social que ele defende. As técnicas de extermínio foram todas usadas contra os povos colonizados antes de serem aplicadas no continente europeu.

O que seria, portanto, a ordem social baseada “modernidade” depois de duzentos anos de revolução?

Para a desilusão de conservadores da época de Henry Kissinger, essa nova ordem, no entanto, não pode manter nenhum regime político estável e nem mesmo uma sociedade. Estamos, assim, sujeitos a novas revoluções.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Referências


Giddens, A. Runnaway World. New York: Routledge, 2000.

Grandin, Greg. A Sombra de Kissinger. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.

Gromyko, A. Memoirs. New York, Doubleday, 1989.

Keegan, John. A Batalha e a História. Rio de Janeiro: Bibliex, 2006.

Kissinger, H. Diplomacia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997.

Kissinger, H. World Order. London: Penguin, 2014.

Kissinger, H. O Mundo Restaurado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

Tocqueville, A. Os Pensadores: Tocqueville. São Paulo, Abril Cultural, 1979.

Thomas Jefferson to Joseph Priestley, 19 June 1802, in: https://founders.archives.gov/documents/Jefferson/01-37-02-0515. Acesso: 29/04/2017.

Notas


[i] Grandin, Greg. A Sombra de Kissinger. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017, p. 32.

[ii] Kissinger, H. World Order. London: Penguin, 2014, p. 22.

[iii] Kissinger, H. Diplomacia, p. 74.

[iv] Kissinger, H. Diplomacia, p.75.

[v]  Kissinger, H. Diplomacia, p. 137.

[vi] Tocqueville, A. Os Pensadores: Tocqueville. São Paulo, Abril Cultural, p. 355.

[vii] Andrew Jackson foi o sétimo presidente dos EUA (1829–1837).

[viii] Thomas Jefferson to Joseph Priestley, 19 June 1802, in: https://founders.archives.gov/documents/Jefferson/01-37-02-0515. Acesso: 29/04/2017.

[ix]  Em 5 de outubro do ano anterior a Letônia havia assinado um pacto de assistência mútua com a URSS.

[x] Kissinger, H. Diplomacia, p. 390.

[xi] Kissinger, H. Diplomacia, p. 391.

[xii]  Kissinger, H. Diplomacia, p. 430.

[xiii] Gromyko, Memories, p. 287

[xiv] Kissinger, H. World Order, p.350.

[xv] Kissinger, H. World Order, p. 353.

[xvi] Giddens, p. 63.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antonino Infranca José Geraldo Couto Eleutério F. S. Prado Julian Rodrigues Liszt Vieira Samuel Kilsztajn Mariarosaria Fabris Mário Maestri Antonio Martins Marcos Silva Gabriel Cohn Marcelo Módolo Henry Burnett Daniel Afonso da Silva Marcos Aurélio da Silva José Luís Fiori Eugênio Bucci Ladislau Dowbor Andrew Korybko Leonardo Boff Ricardo Abramovay Carla Teixeira Bento Prado Jr. Tarso Genro Paulo Sérgio Pinheiro Paulo Martins Ricardo Fabbrini Bruno Machado Ricardo Antunes Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Luís Fernando Vitagliano Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Walnice Nogueira Galvão João Lanari Bo Remy José Fontana Anselm Jappe Luiz Roberto Alves Juarez Guimarães Marilia Pacheco Fiorillo Luis Felipe Miguel Gilberto Maringoni Henri Acselrad Celso Frederico Sergio Amadeu da Silveira Leda Maria Paulani Dênis de Moraes Salem Nasser João Paulo Ayub Fonseca Anderson Alves Esteves Chico Alencar Berenice Bento Slavoj Žižek Armando Boito Lorenzo Vitral Carlos Tautz Fábio Konder Comparato Tales Ab'Sáber João Carlos Salles Alysson Leandro Mascaro Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior Sandra Bitencourt Igor Felippe Santos Gilberto Lopes Yuri Martins-Fontes Manuel Domingos Neto Tadeu Valadares Denilson Cordeiro Vanderlei Tenório Eliziário Andrade Milton Pinheiro Leonardo Sacramento Priscila Figueiredo Jean Marc Von Der Weid Kátia Gerab Baggio Flávio R. Kothe Jorge Luiz Souto Maior Benicio Viero Schmidt José Machado Moita Neto Fernando Nogueira da Costa José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Gerson Almeida Valerio Arcary Renato Dagnino Daniel Costa Luiz Marques Eduardo Borges Michael Roberts Eugênio Trivinho Afrânio Catani Lincoln Secco Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Fernandes Silveira Luiz Werneck Vianna Lucas Fiaschetti Estevez José Costa Júnior Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Vinício Carrilho Martinez Daniel Brazil Heraldo Campos Andrés del Río Paulo Capel Narvai Marcelo Guimarães Lima Bernardo Ricupero Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Marilena Chauí Matheus Silveira de Souza Michel Goulart da Silva Dennis Oliveira André Márcio Neves Soares Érico Andrade Annateresa Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Luciano Nascimento Luiz Eduardo Soares Eleonora Albano Rubens Pinto Lyra Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Renato Martins Rodrigo de Faria Manchetômetro João Adolfo Hansen João Sette Whitaker Ferreira Chico Whitaker Atilio A. Boron Fernão Pessoa Ramos Vladimir Safatle Alexandre Aragão de Albuquerque Marcus Ianoni Francisco Pereira de Farias Bruno Fabricio Alcebino da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronald León Núñez Ari Marcelo Solon Rafael R. Ioris Luiz Carlos Bresser-Pereira Claudio Katz Caio Bugiato Celso Favaretto Leonardo Avritzer João Feres Júnior Flávio Aguiar José Micaelson Lacerda Morais Antônio Sales Rios Neto Thomas Piketty Elias Jabbour Jorge Branco Alexandre de Lima Castro Tranjan Otaviano Helene José Raimundo Trindade Maria Rita Kehl Ronald Rocha Francisco Fernandes Ladeira Osvaldo Coggiola

NOVAS PUBLICAÇÕES